Solenidade da Santíssima Trindade



Frei Dorvalino Fassini, ofm

Introdução

Domingo passado, com a solenidade de Pentecostes, concluímos as celebrações do Mistério pascal, centralizado em Jesus Cristo crucificado, princípio da nova humanidade. Hoje, dando início ao “Tempo Comum” da Liturgia, celebramos a fonte, a origem de toda esta profunda e inaudita história de bem-querer a partir da qual nascemos e vivemos: O Pai, o Filho e o Espírito Santo: a Santíssima Trindade.

1. Do Deus Uno ao Deus Trino
Durante os últimos séculos, entre nós católicos, a Santíssima Trindade era vista, principalmente, como uma verdade fixa, intocável que se devia aprender e crer como dogma fundamental de nossa fé. A partir do Vaticano II, porém, somos convidados a vê-la, também e principalmente, como um mistério presente e atuando na criação do mundo, na história dos homens, na Igreja e principalmente no dia-a-dia de nossa própria vida. Um mistério, portanto, que se deve contemplar, amar e acolher.

Este mistério, veio se revelando aos poucos através da História sagrada. Enquanto no Antigo Testamento, Deus se revelou como o Um (Dt 6, 5), no Novo nos foi revelado como Três – Pai e Filho e Espírito Santo - conforme o conhecido mandato de Cristo aos Apóstolos: “Ide, batizai a todos os povos, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 19).

Falando desta revelação progressiva, paulatina e ascendente, assim se expressa São Gregório de Nissa (séc. IV): “O Antigo Testamento claramente proclama o Criador (Pai) e obscuramente o Filho; o Novo revelou o Filho e insinuou a divindade do Espírito, onde manifestou-se mais explicitamente” no dia de Pentecostes. Seguindo este princípio também a Igreja na sua missão de evangelizar seus fiéis e celebrar o mistério da salvação não o faz todo de uma só vez, mas seguindo o antigo princípio da mistagogia, insistentemente recomendado, hoje, pelo Papa Francisco (Cf. EG 160-168).

Assim, pela mistagogia das celebrações do mistério da fé somos conduzidos “por paulatinas aproximações ou subidas”, como diz o mesmo São Gregório, à contemplação do mistério de Deus. À medida que vamos “avançando e progredindo de glória em glória, brilha a Trindade com luz cada vez mais resplandecente”, completa o mesmo santo. Também nosso Papa, falando desta mistagogia, diz que cada ser humano, cada cristão precisa sempre mais de Cristo. Por isso nossas celebrações não deveriam deixar que alguém se contentasse com pouco, até o dia em que cada um pudesse, a exemplo de São Paulo, exclamar com plena verdade: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vivem mim” (Gl 2,20) (Cf. EG 160). Assim, toda mistagogia se transforma numa verdadeira anagogia (subida).



2. Assinalados com a Cruz em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo
Desde o Batismo, à toda hora, nós cristãos traçamos sobre nossa fronte e nosso peito o sinal maior de nossa fé – a Cruz - com a invocação: “Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém”. Assim, do coração do homem cristão brota este sinal e estas palavras que evocam e invocam o arcano maior de sua fé: o mistério da Trindade, que, silenciosamente, ama. E ama, por ser amor. O ápice, pois, da revelação de Deus em Cristo e por Cristo se expressa nas palavras de São João: “Deus é amor”. Para saborear, pois, o mistério da Trindade é preciso ser amante dela. É preciso que a fé se transforme em amor: nesse amor, do Deus amor, que é Um e que é a Trindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

Se no passado, a espiritualidade cristã centralizava-se no Deus-Uno, hoje, a partir do Vaticano II, descobre-se e parte-se cada vez mais da riqueza profunda do Trino Deus: Pai-amante, Filho-amado, Espírito-dom, o amor-gratuidade, o amor-ternura, em que Amante e Amado se doam e se recebem mutuamente, numa unidade de ser e numa comunhão de viver: a Comunidade, a Família divina.

Pai: Princípio de quem tudo provém, amor amante, abissal, doação fontal, raiz da deidade, origem eterna do Filho e do Espírito Santo, princípio sem princípio de todo o ser e de todo o viver, em Deus, no humano e no universo. Filho: amor amado, recepção originária, primeiro ramo, primeira irrupção da deidade, rebento divino, palavra-imagem do Pai, arquétipo e protótipo do humano, à imagem do qual todos nós fomos criados. Espírito Santo: amor-dom do Pai e do Filho, ternura do abismo do coração paterno de Deus, revelada a nós no Filho encarnado, gratuidade fontal, dádiva pura e simples em que Deus Pai e Deus Filho se nos doam a si mesmos, bondade que se comunica nos nossos corações e em toda a criação.

Trindade:
Vida divina que ferve, e, fervilhando, transborda, superflui, derrama-se na criação do universo para a santificação de todas as coisas e deificação dos homens e mulheres que aprendem a lição do amor gratuito e misericordioso, tornando-se “luz do mundo e sal da terra”.

É com este modo de ser e de viver que fomos assinalados pelo Batismo, convocados, portanto a virmos ser pais no Pai, filhos no Filho, sopros divinos no Espírito Santo. Foi este modo de ser e de viver que São Francisco descobriu e assumiu quando na igrejinha da Porciúncula, por ser adorador da Trindade, abriu por três vezes o santo Evangelho (Cf. LTC 29) e que depois retomou para si e para os seus frades como Forma de Vida quando escreveu a primeira Regra: “Em nome do Pai e do filho e do Espírito Santo! Esta é a Vida do Evangelho que Francisco pediu ao senhor Papa...” (RNB Pró).

Assim, com este sinal, que deu origem em nós o ser de Cristo, é que nós cristãos e franciscanos iniciamos e concluímos sempre de novo os dias, os trabalhos caseiros ou evangélicos, as Liturgias e demais orações, as noites, os meses, e anos de nossa existência, enfim, a vida e a morte.



3. A Trindade santa nossa origem nossa casa nosso céu
As leituras de hoje não falam explicitamente da Santíssima Trindade como tal. Quem o faz é a Antífona de Entrada: “Bendito seja Deus Pai, bendito seja o Filho Unigênito e bendito o Espírito Santo. Deus foi misericordioso conosco”. Do Pai nos fala o Evangelho quando Jesus diz que “tudo o que o Pai possui” é também Dele. Do Filho nos fala a 1ª leitura, figurado como Sabedoria originária, o Primogênito de toda a criatura, Aquele que sustenta todo o Universo, proclamada, mais tarde, por São Paulo como Jesus Cristo crucificado. Do Espírito Santo fala tanto o Evangelho, chamando-o de “Espírito da Verdade”, como a 2ª leitura atestando que é Ele quem derrama em nossos corações o amor de Deus, no qual, com o qual e pelo qual, também nós, por nossa vez, podemos amar o Pai e o Filho.

Em Goiás há um santuário em homenagem à Trindade no qual se guarda um medalhão que representa o Pai e o Filho coroando Maria, sobre a qual desce o Espírito Santo. Este medalhão recorda o arcano da Trindade que não exclui, antes inclui, a criatura finita, representada pela Mulher, Maria. De fato, todo o universo da criação e todos os homens e mulheres de boa vontade estão representados em Maria, filha amada do Pai, mãe amorosa do Filho, esposa fecunda do Espírito (Cfr. Ant. do Ofício da Paixão, de São Francisco). Esta imagem insinua que a Trindade, de certo modo, dispõe-se a integrar na sua unidade, na intimidade de sua vida mais íntima, a humanidade toda e, com ela, a criação toda.

Não podemos, pois, e por isso, deixar de recordar nesta solenidade, nosso Batismo, através do qual, por ordem do Senhor aos Apóstolos, fomos batizados. Batizados “em nome de...” significa mergulhados, inseridos para dentro “do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, o Mistério da Trindade santa, nossa origem, nossa casa, nosso céu. Estamos ligados, unidos a este Mistério como os ramos e o tronco à sua raiz; comungamos de sua vida como a criança no útero materno comunga da vida da mãe. Por isso, toda criatura, a exemplo do Pai, é geradora de vida e cuidadora, como se pode ver com toda clareza nas árvores e na própria irmã nossa a mãe terra “que produz frutos diversos e coloridas flores e ervas” (CSOL); toda criatura, a exemplo do Filho, é obediente e acolhedora da vida, como se pode ver, de novo, nas árvores e na própria irmã nossa a mãe terra que obedecem e acolhem o sol, a chuva e todo tipo de intempéries na alegria do vigor de sua santa paciência (cruz); toda criatura, a exemplo do Espírito Santo, é princípio de doação e comunhão, como o testemunham com clareza, mais uma vez, as árvores e a terra que sabem conviver em profunda comunhão com todas as demais criaturas, até mesmo com aquelas que as agridem e maltratam. Assim, se pudéssemos fazer um Raio X haveríamos de encontrar no íntimo de cada criatura como princípio originário de seu ser e existir: o Pai criando, o Filho obedecendo e o Espírito Santo se doando e se comunicando: o “Deus charitas est”.

É neste sentido que devemos ler esta exortação do nosso Papa: “O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflete e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos. O mundo foi criado pelas três Pessoas como um único princípio divino, mas cada uma delas realiza esta obra comum segundo a própria identidade pessoal. Por isso, «quando, admirados, contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos louvar a inteira Trindade» (LS 128). Se, em todas as criaturas, há o vestígio da Trindade, na alma humana há a imagem, como meditava Santo Agostinho. Na alma humana, a memória (autoconsciência e auto-presença) alude ao Pai, o pensamento (intelecto) alude ao Filho (o Verbo de Deus) e a vontade-amor alude ao Espírito Santo. A Trindade, portanto, como dizia Santo Irineu, é, para nós a “regra da fé”, “fundamento do edifício” do nosso crer e do nosso agir em Cristo; é Aquela (ou são Aqueles: Deus Pai, Filho e Espírito Santo) que – dominicalmente confessamos no Símbolo dos Apóstolos; Aquela ou Aqueles que, por sua misericórdia, “a nós que outrora não éramos povo”, nos congregam e nos fazem “Povo de Deus” (1Pd 2,10), Igreja.

Dentro deste sentido podemos ler a primeira leitura de hoje segundo a qual a relação das duas primeiras Pessoas da Santíssima Trindade - o Pai com o Filho - está insinuada no relacionamento do Criador com a Sabedoria (Sophia). Tudo o que aí se diz acerca da Sabedoria pode se aplicar também à Humanidade, esta criança querida, bem-amada de Deus, que brinca diante dele enquanto ele trabalha. A criança parece dizer algo, aqui, da inocência do início, da liberdade criativa do vigor fontal, a jovialidade do Sim ao ser e à vida, bem como o homem novo, nascido do sangue de Cristo na Cruz.

Falamos da Trindade, como Mistério. Mistério, porém, antes daquilo que não compreendemos é aquilo ou Aquele que nos com-preende, nos envolve, nos abraça, nos acolhe, como no medalhão do santuário de Trindade: nossa origem, nossa casa, nosso céu.

Conclusão
“Para os cristãos, acreditar num Deus único que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente trinitária. São Boaventura chega a dizer que o ser humano, antes do pecado, conseguia descobrir como cada criatura «testemunha que Deus é trino. Este santo franciscano ensina-nos que toda a criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária, tão real que poderia ser contemplada espontaneamente se o olhar do ser humano não estivesse limitado, obscurecido e fragilizado. Indica-nos, assim, o desafio de tentar ler a realidade em chave trinitária” (Exortação do Papa Francisco, LS, 239).

Já que somos incapazes de olhar o universo com a mirada límpida da criança – o novo Adão - a Trindade nos deu, então, o livro da Escritura Sagrada, que nos torna capazes de ver em tudo o vestígio e as marcas da Trindade, e, na nossa própria alma, a sua Imagem. Assim, podemos ouvir em toda a parte, fora e dentro de nós, um mesmo hino de louvor, que sussurra por entre o ruído das máquinas e o fragor dos tumultos da história; um hino que se nos torna mais nítido e retumbante quando, no fundo de nossa alma nos recolhemos, e deixamos ser o silêncio, em que repousa toda a inquietação do mundo, do universo e de nossas próprias almas:

“Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo! Amém! Amém! Amém!” (São Francisco).